A fotografia deveria ter sido colorida quando tirada, mas estava tão envelhecida que parecia preto e branca. Durval aproximou o álbum do rosto. De fato, indiscutivelmente, o homem em pé em primeiro plano era Botelho. Estava mais jovem, devia ter menos de 40 anos, mas era o próprio. Usava um jaleco branco com gola padre fechado até o pescoço, o rosto sério e compenetrado. Ao seu redor três homens com fardas do exército e outros dois usando jalecos. O lugar parecia ser um laboratório. As paredes eram cobertas com painéis de instrumentos eletrônicos e no centro da foto havia uma mesa que parecia ser de aço inoxidável. Deitado nela, um homem coberto com um lençol até a altura do peito. Com uma das mãos, Botelho segurava a cabeça dele por trás, levantada. Os olhos do homem estavam fechados e de sua testa projetavam-se dois chifres cada um da grossura de um punho fechado. Como os de um carneiro, eram recurvados e enrolavam-se em volta da cabeça, como dois grandes fones de ouvido feitos de osso. Eram enrugados e iam afinando até tornarem-se tão finos quanto a ponta de um lápis.
Durval tossiu.
Não conseguia tirar os olhos da imagem. A boca entreaberta e a estranha sensação de que o mundo não era bem como ele imaginou. Com 76 anos de idade achou que já tinha visto de tudo nessa terra. Achou que até era um chegado das coisas do mundo. Um antigo amigo que conhecia todos os cômodos da casa do anfitrião. Mas não. Havia armários, quartos, porões, que ele nem imaginava que estavam lá. Sim, tinha visto na noite anterior fotos na internet de pessoas com “chifres”. Mas aqueles precisavam ficar entre aspas, pois não eram de verdade. Doenças ortopédicas, crescimento anormal de tecido ósseo que acabava rompendo a pele e saindo da cabeça ou mesmo de outras partes do corpo, trágico, sim para o portador da mazela, mas apenas isso. No entanto, aquilo que estava estampado diante dele na fotografia era outra coisa. Ia muito além de uma deformidade óssea.
Durval piscou e tentou engolir a saliva, mas a boca estava seca. Sentou-se no sofá ao lado do gato.
Imaginou porque Botelho, que conhecia há mais de trinta anos, nunca lhe contara nada sobre uma coisa assim. Achou que não tinham segredos um com o outro. Ainda mais Botelho que adorava contar histórias inusitadas. Como quando contou em detalhes o perrengue que passou na Argentina quando fora voluntário para ajudar as vítimas do Tornado San Justo. A equipe de voluntários fora pega por um segundo tornado durante a tentativa de resgate das vítimas e, após um desmoronamento do prédio em que estavam, tiveram que ser resgatados por uma segunda equipe de voluntários.
— Te disse que esse Botelho não era boa gente — Durval ouviu ao longe.
Olhou para Heitor que já estava guardando o álbum de volta na gaveta da escrivaninha da sala.
— Como você conseguiu essa fotografia?
Heitor sorriu e Durval entendeu que ia ouvir uma história ainda mais bizarra do que a fotografia em si.
CONTINUA…