Durval estava todo espremido no banco de trás do Fusca de Joana. A mulher havia empurrado o assento do motorista todo para trás a fim de caber com seus cento e trinta quilos atrás do volante. Durval matutou como ela conseguia manobrar o carro com a direção espremida na barriga daquele jeito. De qualquer forma, a empregada, que estava com eles há mais de trinta e cinco anos, havia sido gentil em ir buscá-lo no hospital.
Ao lado dela, no banco da frente, Dolores contava, animada, um caso antigo em que Durval havia quebrado a perna ao subir no sótão da casa. Ele se lembrava bem, queria descobrir a origem do barulho que sempre ouviam durante a noite. A descoberta do ninho do gambá no forro da cozinha lhe custara três meses de gesso na perna.
Durval olhou para o gesso na perna esticada em cima do banco traseiro do Fusca, balançava para cima e para baixo com o trepidar do carro. Pensou que pelo menos, da outra vez, havia descoberto o gambá.
Recapitulou as pistas que tinha até o momento. Uma pegada de salto alto no tapete da sala. Um cadáver desaparecido da cozinha de sua casa. Uma camionete Ford F1000. Duas pessoas no alto da ladeira, uma alta e magra, a outra baixa. Seriam Botelho e seu caseiro manco? Afinal Botelho tinha uma F1000. Sentiu uma pontada de culpa por desconfiar do amigo que conhecia há três décadas.
Durval olhou pela janelinha do Fusca. Estavam atravessando o centro da cidade quando ele viu uma F1000 parada na frente de uma loja de materiais de construção. Um homem alto usando uma jardineira de brim desbotada carregava a carroceria com sacos de cimento. Durval pensou em pedir para Joana parar a fim de falar com o sujeito, mas quantas F1000 haveriam na cidade? Mais à frente viu outra parada no semáforo. Engraçado como não notamos as coisas quando não significam algo.
Quando chegaram em casa, Joana entrou com o Fusca na garagem e parou atrás do Corcel destruído. Durval saiu do carro auxiliado pelas duas e passou pelo Corcel, a coisa mais parecia uma obra de arte contemporânea, toda amassada. A porta do motorista estava entreaberta e ele pôde ver o volante retorcido como um pretzel. Uma pena. Era um bom carro, o comprara zero. Gostava do formato quadradinho e da frente que parecia sorrir com o para-choque.
— Quem trouxe? — perguntou Durval.
— O Geraldo do guincho — disse Dolores.
Durval não quis pensar no que faria com o carro. Limitou-se a entrar em casa e ir até o sofá, onde desmontou com um gemido. Apoiou a perna engessada em cima da mesinha de centro e pegou o controle da TV. Não ligou, só ficou com ele na mão.
— Quer alguma coisa, meu bem? — perguntou Dolores.
— Não, Dodô, tudo bem.
— Chegou uma carta para você enquanto estava no hospital.
— Carta?
Dolores foi até a escrivaninha sob a janela da sala e trouxe o envelope. Era quadrado e feito de papel pardo. Na frente o nome e endereço de Durval, atrás não havia remetente. Durval gelou ao imaginar quem poderia ter enviado.
Abriu o envelope e tirou um papel branco. Ao terminar de ler, virou-se para Dolores:
— Ligue para a polícia, mulher.
CONTINUA…